Pedalando com crianças
Facebook Twitter Google+ Pedalar com as crianças pode se revelar uma grande aula sobre urbanismo e cidadania Por...
O debate sobre a inquietação de uma gravidez indesejada vem gerando polêmica, principalmente nas redes sociais. Confira abaixo o ensaio que a nossa colaboradora, Vanessa Alves, escreveu sobre o tema.
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Angústia, mal-estar e sofrimento. Três palavras, uma respiração entrecortada e reticências. Há úteros iluminados dentro das mulheres.
Elas perambulam de um lado para o outro nas cidades, nos becos, nas comunidades e nas mansões. Úteros que acolhem vidas, um punhado de células ou qualquer outra forma de possibilidade existencial. Ou nada, ou a insignificância do vazio, que só será legitimado pela mulher, dona do seu corpo.
O desejo é simples, não há o que titubear: são seres humanos que devem e têm o direito de decidir sobre a extensão dos próprios corpos – que as definem como mulheres.
Prisão Maternidade
Recentemente, o filme Olmo e a Gaivota, dirigido por Petra Costa e Lea Glob, trouxe para o cinema o retrato de uma gravidez não desejada. A obra, que ficou marcada em meu inconsciente como uma obra azul e que possui belas fotografias do sagrado feminino, discute justamente os delírios da personagem Olivia, atriz que se prepara para encenar A Gaivota, de Tchekov. Quando o espetáculo começa a tomar forma, Olivia e seu companheiro Serge, que se conheceram no Théâtre du Soleil, descobrem que ela está grávida. A personagem se enxerga totalmente enclausurada dentro de um momento que, tradicionalmente, foi feito para celebração. Olívia se vê impossibilitada de gritar seus desejos profissionais e pessoais e, mais do que isso, de expressá-los em corpo. A tristeza logo se nota nos diálogos cansativos com o marido e com a falta de ação que a vida a inflige.
Embora o filme não tenha me pegado pelas mãos, tão pouco me convidado para dançar (os atores dançam belamente entre si, e, volto a afirmar, num azul que vem da tristeza e da redução da energia, provocada pelo enclausuramento) vale a pena dar uma espiada pelo tema e pelas fotografias.
O tema é feliz ao dar um soco nos preconceitos e na figura romanceada da maternidade. Talvez, o amor materno seja essa verdade frontal com a infelicidade de se saber mãe e aguentar até o último instante para ver a cara da tua perpetuação estendida num abraço de suspiro. Talvez menos. Talvez seja também a liberdade de decidir que o momento é inoportuno e que agradar aos outros pode custar caro quando conhecemos muito bem a pele que habitamos.
De todas as possibilidades, a decisão acontece nos úteros, iluminados.
Microcefalia
Ao encontro do tema, o país registra o surto da doença da microcefalia, associado ao Zika Vírus e transmitido pelo mosquito Aedes Aegypti (no Brasil, foram confirmados 270 casos de malformação do cérebro. Outros 3.448 estão sob investigação. E a doença já alcança 23 países).
O mosquito, além de picar a pele humana, cria um rasgo e expõe a ferida aberta de um surto social que traz à tona questões que envolvem o preconceito e o totalitarismo, praticados incessantemente há tempos no Brasil.
Está mais do que óbvio que a epidemia está relacionada às condições insalubres que muitos cidadãos enfrentam nos cantos desse país e que estão fortemente relacionadas ao saneamento básico, que hoje atinge pelo menos 30 milhões de brasileiros que não possuem acesso à água tratada e nem ao esgoto coletado, como revela uma reportagem da revista Carta Capital.
“A falta de saneamento e água tratada costuma ser associada a verminoses, leptospirose, hepatite e dermatites, mas é inegável que também contribui para proliferação do Aedes”, diz Édson Carlos, do Instituto Trata Brasil.
Descaso
É evidente que no caso da microcefalia são crianças com deficiência e que o nascimento pode vir a alterar todo o sistema familiar e social. Mas quais são as necessidades de uma criança com microcefalia? Será que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem acolhimento suficiente para amparar essas crianças? Isso para não falar dos traumas que precedem o nascimento, que vêm dos pais, da vulnerabilidade social. Ou será que depois do nascimento, essas crianças que foram geradas em meio ao turbilhão da falta de dignidade terão direito à água potável? Sim, direito. Acesso existe, há água.
“O Sistema Nacional mostra que 47% da população do Norte ainda não tem acesso à água tratada, o que é preocupante, principalmente levando em conta que a região Norte é onde está a maior concentração de água doce do Brasil. A maior parte das empresas de saneamento básico do Norte está em condições técnicas e financeiras muito ruins e isso também impede maiores avanços na região. O esgotamento sanitário é ainda mais precário; apenas 6% da população é atendida com os serviços de coleta e um pouco mais de 14% dos esgotos são tratados, totalizando 86% de esgotos sendo despejados in natura. Mesmo as grandes capitais como Belém e Manaus ainda estão atrasadíssimas em relação às demais do Brasil. Falta mais empenho das autoridades, um choque de gestão nas empresas e um olhar mais atento por parte do Governo Federal para que a região Norte saia desse atraso histórico que só prejudica o meio ambiente e a saúde da população”. Explica o presidente executivo do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos.
Especialistas orientam, em casos de microcefalia, a realização de terapias para melhorar as habilidades da criança, como a fala. Médicos ainda podem recomendar a fisioterapia, terapia ocupacional e outras formas de tratamentos orientados, uma vez que a doença pode causar déficit intelectual, atraso nas funções motoras e de fala, hiperatividade, epilepsia e outras alterações neurológicas.
Qual a competência do sistema público e da Política Nacional de Humanização, implementada em 2013 pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para lidar com todas questões como essas?
De acordo com a médica Izabel Cristina Rios, coordenadora do Núcleo Técnico e Científico de Humanização da USP – Universidade de São Paulo, a proposta da humanização da medicina seria ampliar o olhar atual da assistência médica, incluindo em seus procedimentos aspectos existenciais, sociais, culturais e religiosos.
Segundo a Secretaria de Estado da Saúde, o processo de construção da Política Estadual de Humanização tem como tarefa adequar a proposta nacional à realidade do Estado, integrando e potencializando as ações de humanização já desenvolvidas.
Ora, com microcefalia, sem microcefalia, com nada e com tudo; afinal, o que podem esperar as famílias, e, principalmente, as mulheres além de serem acolhidas e escutadas diante de suas próprias angústias? Mulheres essas donas das tuas próprias entranhas. Será mesmo que todas estão preparadas para criar uma criança? Independente dessa criança apresentar uma doença ou não.
Aborto
Apesar dos dados serem alarmantes, antes de tentar entender as questões práticas de combate à epidemia, é preciso escancarar os olhos em direção ao significado do aborto e do útero, dos úteros iluminados. O desejo é simples, não há o que titubear: são seres humanos que devem e têm o direito de decidir sobre a extensão dos próprios corpos – que as definem como mulheres.
De acordo com o portal El País, a cada ano, há mais de 200 mil atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) por complicações pós-aborto, a maioria deles por procedimentos induzidos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados mais de 1 milhão de abortos inseguros por ano no Brasil. O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país.
No país, o aborto é considerado crime contra a vida humana pelo Código Penal Brasileiro, em vigor desde 1984, prevendo detenção de um a três anos para a gestante. Entretanto, a prática pode ser realizada em hospitais quando há “risco” de morte para a mulher em decorrência da gravidez; quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico.
Aborto: Crime contra a vida. Mas contra a vida de quem?
O aborto é permitido, livre e seguro para a mulher rica, que pode pagar por ele. A mulher pobre é criminosa – quando não morre. Impossível, nesse caso, não rememorar a triste história de Jandira Magdalena dos Santos Cruz. A carioca foi morta em agosto de 2014 após ter ido numa clínica clandestina na tentativa de abortar.
Jandira desembolsou R$ 4,5 mil para realizar o aborto. Há indícios de que o ex- marido tenha se envolvido nos procedimentos.
De acordo com as últimas notícias sobre o caso, a 4ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio determinou que oito membros da quadrilha responsável pela morte da mulher, sejam levados a júri popular. Dois deles respondem em liberdade. Na época, a investigação ficou com a 35ª DP (Campo Grande).
Jandira não era rica, mas não era pobre. Era normal. Tinha dinheiro para bancar seus desejos, suas decisões e tinha também coragem. Esse tipo de coragem que te pega desprevenida e te joga. Depois, sem saber, você já está frente a frente com o objeto do desespero.
Foi e foi muito. Foi para sempre. Foi e virou notícia. Além de ter ido, foi carbonizada, morreu de morte muito morrida, não se contentaram com o corpo, ou melhor, com os corpos.
Jandira e seu filho se foram, Jandira quis ir com o filho? Ou o filho puxou Jandira? A insensibilidade do procedimento não a fez resistir. Resolveu voltar para seu estado inorgânico e beijar os olhos do seu filho. Não tinha escolha, não podem saber, não a deixaram ser mulher.
Sobram dúvidas:
Quantas “Jandiras” se desencontram em esquinas em condições desumanas?
Quantos casos de microcefalia precisam acontecer para enxergarmos que quem decide o que é melhor para as mulheres são as mulheres?
Quanta fartura de dinheiro será necessária para apaziguar uma mulher e a amparar com o coração, com a humanidade que qualquer ser humano tem o direito?
Quanto custa a liberdade?
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